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A misteriosa Cidade de Korona


zelloswider
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Cidade de Korona

 

Aparentemente, houve alguma vez uma cidade no norte da Suécia, chamada Korona, mas de alguma forma todo mundo esqueceu de sua existência. Sou policial e trabalho em Kalix, um município perto de onde a cidade de Korona supostamente ficava. Naquele lugar, não existem sinais da cidade - apenas uma densa floresta - mas certos detalhes relacionados à minha própria família me dão a certeza de que esse lugar era de fato real.

 

 Só que todo o resto do mundo apenas esqueceu dela... Não consigo imaginar como ou o porquê, mas é a única conclusão que consegui chegar. Para mim, isso tudo começou quando duas Romenas colhedoras de mírtilo vieram até minha pequena delegacia para relatar algo que tinham visto nas profundezas da densa floresta. Não sabiam falar Sueco ou Inglês para explicar exatamente o que tinham encontrado, mas ficou claro de imediato que tinha deixado-as completamente apavoradas. Pelo que consegui entender, parecia envolver um cadáver humano. Eventualmente, depois de trazer um intérprete de uma cidade vizinha, foi revelado que tinham cruzado com uma criança morta, não devia ter mais do que dez anos.

 

 Levaram eu e mais dois colegas - seguidos por uma ambulância - até a localização onde tinham encontraram a criança. O sol estava se pondo por trás de uma neblina grossa quando chegamos lá. Acendi um cigarro enquanto saíamos da estrada principal e entrávamos andando pela floresta, para onde a criança supostamente estava. Me sentia um pouco desconfortável em ter que lidar com um cadáver infantil, mas já tinha lidado com casos desse tipo - alguns acidentes de carro - e não me sentia afetado no momento. Era só mais um trabalho, ou assim eu pensava.

 

 As Romenas pararam quando nos aproximamos e se recusavam a ir além. Havia pânico em seus olhos, mais do que eu esperava mesmo com tais extremas circunstancias. Um dos meus colegas ficou com as duas enquanto o resto de nós continuamos. Logo nos deparamos com uma pedra enorme que se fundido lá durante a era do gelo. Meu colega deu a volta e alguns momentos depois voltou correndo, tão pálido que parecia ter visto o próprio Diabo. Se curvou e vomitou na minha frente. 

 

 "Está..." disse. "Está do outro lado... Puta merda."

 

 Não perguntei nada, apenas continuei para ver com meus próprios olhos, com os paramédicos me seguindo logo atrás. O que achamos do lado da pedra... não era natural. Metade da criança - uma menina de cabelos loiros - estava fundido com a pedra como se estivesse passando pela rocha como um fantasma e de repente voltou a ser de carne e osso antes de ter tempo de sair de lá. Ou, como um colega ressaltou mais tarde, como se tivesse se teletransportado para dentro da pedra. O olhar morto e soturno da menina para a floresta parecia contar uma história de tragédia desconhecida pelos vivos. Os paramédicos rapidamente afastaram os olhares em silêncio, horrorizados com o destino que sofrera, mas eu não consegui desviar o olhar. Nunca fui um homem religioso, mas essa experiência me fez duvidar de tudo que acreditava antes.

 

 E não somente pelo jeito bizarro que a pobre menina havia perdido sua vida, metade de seu corpo engolido por uma rocha... Havia algo a mais sobre aquela garota. Algo que me fizera sentir totalmente vazio por dentro, como se um pedaço da minha própria alma tivesse sido arrancada, deixando um buraco oco no meu coração que rapidamente se preencheu com uma tristeza que jamais sentira antes. Era um sentimento medonho, que só se fazia pior pelo estranho fato que uma pequena parte de mim reconhecia a menina. Não sei de onde... Seu rosto era como uma vaga memória ou um sonho que esquecera recentemente.

 

 Nos recompomos e começamos a conversar, tentando entender a situação sem nenhum sucesso, enquanto os paramédicos se aproximavam do corpo. Tentei me focar nos fatos sólidos enquanto investigávamos a cena. A menina vestia uma jaqueta rosa. Em um dos bolsos, encontramos uma flor de aparência estranha - suas cores eram exóticas, lembrando a coloração das asas de um besouro - e um cartão amarelo de biblioteca com um texto que nos deixou muito confusos. "Biblioteca Pública de Korona," dizia.

 

 A menina também havia escrito seu nome no cartão. Quando vi, meu mundo começou a girar. "Isabella Lexelius", dizia em uma letra infantilizada. 

 

 "Esse não é o seu sobrenome, senhor?" meu colega perguntou. 

 

 "É... É sim..." Eu não sabia o que dizer ou pensar. 

 

 "Você a conhece?" 

 

 "Eu... Eu não sei... Não... Não, eu nunca a vi antes em toda minha vida. Deve ser uma coincidência."

 

 "É uma grande coincidência, senhor."

 

 Não respondi. 

 

 "Tem alguma coisa no chão," um dos paramédicos disse.

 

 No musgo manchado de sangue em baixo da menina, havia um caderno. Devia ter caído de sua mão, a que estava pendurada sobre o livro. Peguei e abri. As páginas estavam cobertas com textos pequenos, escrito com uma caligrafia diferente da da garota.

 

 "Senhor!" um dos paramédicos disse. "Nós traremos ferramentas para cortá-la."

 

 "Sim," falei distraidamente. 

 

 "Só mais uma coisa," ele disse. 

 

 Coloquei o caderno dentro de um saco plástico de evidências. "O que foi?" 

 

 "Tem sangue demais." O médico apontou para o chão. 

 

 "Como assim tem sangue demais?" Perguntei. 

 

 "Embaixo da rocha, senhor," explicou. "É impossível que todo esse sangue venha de uma criança só."

 

 Fiquei em silêncio por um momento e declarei:

 

 "Teremos que voltar com ferramentas melhores."

 

 Um dia depois, removemos a parte de cima do corpo com sucesso e levamos de volta para o necrotério onde seria analisado. Também tentamos levantar a pedra com ajuda de um guindaste, mas nem se mexia. Ao invés disso, cavamos um buraco ao redor mas não achamos mais nenhum corpo. Tudo que podíamos fazer era testar a maior parte do sangue encontrado.

 

 Durante a examinação do corpo, eu lia o caderno. Continha a história da cidade de Korona. Fiquei convencido que era apenas uma peça de ficção - uma história doida que achei ser escrita pelo homem que havia matado a menina - até que algumas semanas depois o laboratório forense me ligou.

 

 Tive problemas para acreditar, mas não tinha como estar errado.  Fizeram o teste de DNA da menina comparado com o meu por causa do sobrenome. Foi minha ideia, sendo que não queria levantar mais suspeitas. Não achamos que revelaria nada, mas revelou... A menina de mais ou menos dez anos, Isabella, era minha filha. Eu tinha certeza que isso era impossível. Dez anos atrás eu vivia com minha ex-esposa e nunca a traí e certamente não tive nenhum filho com ela. Ficamos juntos por mais cinco anos, então saberia se ela tivesse tido um bebê durante aquela época. Mas ainda assim, o teste era positivo e sem margem de erros. 

 

 Abaixo você irá encontrar uma transcrição do caderno. Digitei aqui com a esperança de que alguém se lembre da cidade de Korona, ou alguém que tenha morado lá. Por favor, entre em contato comigo se tiver alguma informação. 

 

 Isso é o que estava dentro do caderno:

 

 Meu nome é Helena Fredioksson. Cinco anos atrás eu era outra pessoa. Era mais jovem, não só no sentido habitual, mas espiritual também. Havia felicidade em minha vida e eu tinha esperanças e sonhos. Agora, isso não existe mais... Não tenho muito tempo para escrever, mas tentarei explicar o que aconteceu conosco - toda nossa comunidade - da melhor forma possível. 

 

 O evento, como viemos a chamar depois, aconteceu em 09 de Julho de 2013. Eu estava apenas visitando Korona aquele dia para levar minha sobrinha, Isabella, na grande estréia do O Bosque Vermelho, o novo parque de diversão da cidade. Era para ser o maior de toda a Suécia e Isabella implorou para seus pais que a levassem, mas nenhum deles estavam disponíveis por causa de seus empregos. Então me ligaram e perguntaram se eu poderia fazer esse favor. Sou eu quem chamavam quando precisavam de ajuda com Isabella, a única pessoa em quem confiavam. Como queria que esse não tivesse sido o caso, considerando tudo que aconteceu.

 

 Chegamos bem cedo, algumas horas antes da abertura, para que não precisássemos ficar na fila o dia inteiro para somente cruzar os portões de entrada. O tempo estava incrível. Havia chovido um pouco na parte da manhã, então estávamos um pouco preocupadas, mas quando chegamos na cidade não havia uma nuvem à vista.

 

 Isabella não conseguia parar de falar sobre quanto nos divertiríamos, e aqueceu meu coração vê-la tão feliz. Nós demoramos um pouco mais que o esperado para chegar no parque, sendo que uma das ruas principais estava fechada por causa de uma parada militar. Não nos incomodou muito, na verdade apenas aumentou o ar de celebração que já estava no ar. Para evitar a parada, tivemos que pegar um ônibus até o centro da cidade, na Praça Freyja, e de lá pegamos o metrô até a estação do centro de negócios do Yellow Neutral - o maior arranha-céu da Suécia. De lá podíamos andar até O Bosque Vermelho.

 

 Havia pessoas para todos os lados. Parece que muitos tinham pego a balsa pelo rio, algo que eu não sabia que dava para fazer. Isso significou que tivemos que ficar em uma fila de qualquer forma. Isabella não se importou, havia um homem empurrando um carrinho e vendendo cachorros-quentes ao lado da fila. Comprei um cachorro-quente e um refrigerante para Isabella. Seus pais não gostavam muito quando eu comprava bobagens para ela comer, mas achei que entenderiam, dado as circunstancias do dia. O homem também vendia balões vermelhos para as crianças. Isabella disse que queria um. Tentei explicar que teria que carregá-lo o dia inteiro e que haveriam mais balões lá dentro do parque, mas não me ouviu. Relutantemente, comprei também um balão.

 

 Nesse momento, ninguém ali sabia que suas vidas estavam prestes a mudar em questões de minutos.

 

 Isabella acidentalmente soltou seu balão. Achei que isso a deixaria triste, mas não pareceu a incomodar muito. Olhamos o balão enquanto subia aos céus e ia embora. Logo, não era nada mais que um ponto vermelho em uma vastidão azul. Então, de repente, desapareceu.

 

 "Para onde ele foi?" Isabella perguntou. 

 

 Eu não sabia explicar. Tinha apenas desaparecido. 

 

 "Não sei," falei. "Talvez tenha estourado?" 

 

 Mas algo - uma sensação estranha que eu não conseguia racionalizar - me fez duvidar disso. Então, poucos minutos depois, um vento muito forte começou a vir de todas as direções. Carregava um cheiro que me lembrava de algo apodrecido. 

 

 "Eca," Isabella disse com seus longos cabelos brancos dançando com o vento. "Que cheiro é esse?" 

 

 Segurei sua mão com mais força. "Não sei," falei. 

 

 As pessoas olhavam em volta, confusos, e as vozes antes felizes agora estavam cheias de um tom de preocupação. Algo estava acontecendo, mas ninguém sabia o que era. Sirenes ecoaram ao longe, parecendo estar vindo do centro de negócios.

 

 "Meu Deus," uma mulher falou e apontou em direção ao arranha-céu. "O topo do prédio sumiu!" 

 

 Não era tão fácil de ver, mas ela estava certa. O topo do prédio mais alto tinha sumido como se tivesse sido cortado com uma faca. Isabella era baixinha demais para ver, mas estava percebendo que algo não estava certo pela expressão de todos em sua volta, então começou a ficar com medo. 

 

 "Acho que é melhor a gente sair daqui," falei, agindo por extinto. "Acho que é não é seguro." 

 

 Isabela começou a lacrimejar. "Mas o parque, nós vamos..."

 

 "Nós voltamos mais tarde, querida," falei enquanto andávamos para longe da multidão. Uma das balsas estava saindo naquele momento, rapidamente subimos. Algumas pessoas nos acompanharam, mas a maioria ficou para trás, na esperança que tudo normalizasse. Isabella chorou, mas não estava brava. Enquanto a balsa lentamente se afastava da costa, uma espécie de comoção irrompeu entre a multidão na parte terrestre. Não consegui enxergar o que estava acontecendo, mas de repente todos gritavam em horror e tentavam correr em direção da água. Estavam claramente fugindo de alguma coisa, mas não conseguia ver do que. Tudo que eu conseguia enxergar eram pessoas se pisoteando enquanto tentavam pular no rio e fugir nadando. Era uma visão horrível, e agradeci por Isabella não ser alta o suficiente para ver por cima das barras de proteção da barca.

 

 Depois, as sirenes do sistema de alerta de emergência começaram a berrar aquele som  sombrio e de catástrofe iminente. Todos faziam perguntas que ninguém sabia responder. A maioria das pessoas falavam sobre algum ataque, ou por terroristas ou pelos Russos.

 

 Peguei meu celular para ligar para minha irmã, mas não havia sinal. Tentei com o celular de emergência de Isabella, também não tive sorte. Logo descobri que ninguém tinha sinal. Nos lados do rio que passavam pela cidade, as pessoas olhavam pelas janelas tentando ter um vislumbre do que estava acontecendo mas a única coisa que podiam ver fora do comum era o prédio cortado no centro de negócios do Yellow Neutral.

 

"Olha," Isabella falou e apontou para o céu. "Eu nunca vi um passarinho tão grande assim!"

 

Uma criatura que parecia um pássaro sobrevoava alto acima de nós. Era totalmente preto. Embora não posso dizer com certeza, parecia tão confuso em estar nos vendo quando nós estávamos confusos em vê-lo. Circulou o centro da cidade algumas vezes depois voou para longe. A visão daquele pássaro gigante, ou seja lá o que fosse, transformou nossa confusa ansiedade em terror. Ainda não sabíamos o que tinha acontecido, mas agora sabíamos que não eram terroristas ou forças estrangeiras. Aquilo era outra coisa, algo impossível de se acreditar e ainda assim impossível de negar.

 

A balsa nos deixou um pouco mais a frente no rio, perto da Praça Freyja. As pessoas pareciam estar em estado de pânico, embora ninguém soubesse o que havia de errado. Alguns empacotavam seus carros para fugir da cidade, outros corriam para algum lugar - em direção de suas famílias, talvez - mas a maioria se aglomeravam em volta de policiais, trabalhadores ou militares da parada para tentar conseguir informações. Mas só recebiam sempre a mesma informação, gritadas para que todos em volta pudessem ouvir por cima das sirenes de alerta de emergência: não se sabia ainda nenhuma informação e que precisavam voltar para suas residências e aguardar mais informações pelo rádio. 

 

"Como vamos ouvir o rádio se não tem energia elétrica?!" A voz veio de uma senhora. "Olhe em volta, não tem energia em lugar nenhum!"

 

Ela estava certa. 

 

"Vão para cara, fechem suas janelas e esperem a energia voltar," um policial disso. "Não sabemos o que está acontecendo, mas a coisa mais segura a se fazer é seguir o protocolo..."

 

Ele foi interrompido por algo que acontecia a alguns metros de distância. A primeira pessoa que tinha tentado sair da cidade - um homem com uma moto barulhenta - tinha voltado. Eu estava carregando Isabella, confortando-a ao mesmo tempo que tentava ouvir o que o homem da moto tentava dizer para todos. Me empurrei pela multidão para me aproximar. Ele andou até o centro da praça e subiu no pé da estátua do Freyja. Poucas pessoas acreditaram nele, mas todos que haviam visto a criatura nos céus não tinha dúvidas de que o homem estava falando a verdade, mesmo que parecesse impossível. 

 

"Não tem saída!" o homem gritou. "A estrada principal que dá para saída da cidade simplesmente para e... só tem uma floresta. Não consigo explicar. Sinto muito. Mas é a verdade. Estamos cercados por uma densa e enorme selva que não tem saída." 

 

"Então é verdade," o policial sussurrou para si mesmo ao meu lado. "Pelo amor de Deus, era verdade."

 

Perguntei o que queria dizer com aquilo. Primeiro, não quis reconhecer minha pergunta, mas quando viu minha confusão e as lágrimas no rosto inocente de minha sobrinha, virou para mim e disse em tom baixo: 

 

"Antes de perdemos contato com o helicóptero que estava vigiando a parada, o piloto disse que algo não fazia sentido. Ele estava... estava caindo. Algo tinha cortado os rotores. E disse que tudo tinha mudado de certa forma... A vista tinha mudado. Antes de bater no chão gritou que tinha visto uma selva ao oeste e um oceano ao leste."

 

Mais e mais relatos chegavam e, embora fosse impossível distinguir os rumores dos fatos, todos contavam a mesma história: o mundo inteiro ao redor da cidade havia sido substituído do nada. A cidade era a mesma, mas o céu acima não era. Eventualmente, as sirenes ficaram em silêncio, os carros pararam de buzinar e a cacofonia de vozes desapareceu. Um silêncio misterioso caiu sobre a cidade. O sensação estava além do irreal.

 

Eu não sabia o que isso significava. Tentei explicar para minha sobrinha, mas ela tinha apenas cinco anos e não conseguia entender. Ela queria ir para casa para seus pais e eu não sabia o que dizer. Ela estava cansada e precisava descansar, então fui em uma pousada nas proximidades e paguei por um quarto. Logo, a economia da cidade entraria em colapso, mas nos primeiros dias, neste novo mundo desconhecido, as pessoas ainda aceitavam dinheiro como pagamento.

 

O que se seguiu foram cinco anos de sofrimentos e dificuldades intermináveis, uma batalha contínua pela sobrevivência sem esperança de ajuda ou resgate. Tudo começou na primeira noite. O sol, idêntico ao nosso, ainda que novo e estranho, estava ao norte, em vez de ao oeste, e foi substituído por estrelas irreconhecíveis que cobriam todo o céu. Quando olhei para eles da pequena janela do nosso quarto, eu não senti admiração, mas me senti completamente perdida. O sentimento mais estranho durante todos esses anos deve ter sido a sensação paradoxal de familiaridade com as ruas misturada com a consciência do deslocamento total. Acho que foi em parte por isso que as pessoas se mantiveram perto do centro da cidade, para se afogarem na ilusão de estar em casa, embora soubessem, no fundo, que não podiam escapar do seu destino como encalhadas no desconhecido.

 

Então, quando me inclinei para fora da janela, ouvi os sons. Pessoas gritando, tiros, carros dirigindo loucamente pelas ruas, sem qualquer lugar para ir, e ocasionais uivos estranhos que faziam meu sangue gelar. Eu não vi nada do que aconteceu naquela noite, mas isso mudou a população - mais de dois milhões de pessoas - para sempre.

 

Fechei a janela e me escondi embaixo da cama com Isabella. Ela queria chorar com saudades da mãe, mas mantive minha mão sobre sua boca trêmula.

 

A noite seguinte foi mais calma, provavelmente porque ninguém ousou se aventurar lá fora. Com o passar dos dias, logo percebi que a ameaça não vinha da selva desconhecida fora da cidade, mas das pessoas ali. Era impossível dizer quantos crimes foram cometidos, mas dado o que vi com meus próprios olhos - saques, roubos e até assassinatos -, calculei que a taxa de criminalidade deve ter aumentado muito. No entanto, não era uma anarquia total. A polícia e as poucas unidades militares que estavam na cidade para o desfile mantinham alguma ordem vitais para a comunidade. Como as pessoas comuns não tinham armas, a polícia e os militares não eram ameaçados pelos cidadães comuns.

 

Um líder deu um passo à frente - o homem da motocicleta - e depois de algumas semanas, todos pareciam cooperar pacificamente. A comida que foi deixada nas lojas era distribuída de forma justa e todos que podiam trabalhar pareciam fazê-lo sem hesitação, até mesmo eu.

 

Os cientistas que estavam trabalhando na universidade na época do evento não conseguiram descobrir o que havia acontecido, mas com a ajuda de centenas de cidadãos,  conseguiram construir uma pequena usina nuclear que poderia retornar a eletricidade para a cidade. Ajudei principalmente com esse projeto. Eu não sabia nada sobre física nuclear, mas fiz o pouco que pude. Era incrível o que nós éramos capazes como um povo e em toda a minha terrível sensação um sentimento de orgulho cresceu no meu peito. Mas nada era simples para nós. Longe disso.

 

Além do meu problema pessoal em manter Isabella saudável e segura - o que consegui, embora ela nunca tenha se sentido segura -, haviam outros três grandes problemas que continuavam crescendo a cada semana.

 

O primeiro era situação da comida e da água. Algumas pessoas conseguiram cultivar trigo e batatas em parques e campos de futebol, mas isso não era suficiente. Estávamos ficando sem comida e água. Chovia de vez em quando, mas poucas pessoas se sentiam seguras bebendo a água da chuva. Para combater esse problema - e também para encontrar soluções para outros problemas - expedições foram enviadas para explorar a selva. Estes geralmente terminavam da mesma maneira, isto é, ninguém nunca retornava. Apenas uma ou duas vezes alguém conseguiu voltar para a cidade, mas esses já não eram eles mesmos. Era como se algo na selva tivesse capturado suas almas e deixado seus corpos voltarem sem nenhum arranhão. 

 

O segundo problema era a natureza. Parecia ter nos poupado nos primeiros dois meses, mas logo depois que recuperamos a eletricidade, se voltou contra nós. Demorei um pouco para ver com meus próprios olhos, mas - aparentemente ao acaso - criaturas misteriosas entraram na cidade. Às vezes apenas passavam, para nunca mais voltar. Uma policial - um dos novos recrutas - me disse que havia seguido uma criança azul nua, enquanto caminhava solenemente pela cidade e depois voltava a sair dela.

 

Em outras ocasiões, monstros indescritíveis causavam estragos nas ruas, matando o máximo de pessoas que podiam antes de voltar para seja lá de onde tinham vindo. 

 

A certa altura - e isso eu realmente vi por mim mesma - uma enorme centopeia, totalmente branca com centenas de olhos vermelhos, saiu de repente de um bueiro. Rapidamente subiu na lateral de um prédio - como se soubesse exatamente o que estava fazendo - e entrou em uma das janelas do último andar. Depois começaram os gritos das pessoas de dentro do prédio. Alguns escaparam, mas todos os outros dentro foram despedaçados. Somente após cerca de cinco minutos a centopeia saiu do prédio da entrada, o corpo branco e segmentado agora todo manchado de sangue e retornou para o bueiro.

 

Esses ataques, como eram chamados, despertaram medo e pânico em todos nós. Embora isso não acontecesse com frequência, acontecia com frequência suficiente para que todos ficassem nervosos o tempo todo.

 

O terceiro problema também só se tornou perceptível depois de um tempo.  Problemas de saúde. Não havia padrão para quem era afetado ou não, mas algumas pessoas - provavelmente não mais que 1% - adoeceram. Começou como uma febre e progrediu lentamente com mutações assustadoras atingindo partes aleatórias do corpo. A maioria dessas mutações tornou suas vítimas deficientes e desfiguradas, mas às vezes - muito raramente - as vítimas desenvolviam características aparentemente benéficas. O caso mais extremo que eu vi foi uma jovem que cresceu um terceiro olho no meio da testa. A íris do novo olho brilhava com cores surpreendentes e a garota alegou que podia usar o olho para ver as emoções de outras pessoas.

 

No início das crises de saúde, os doentes eram maltratados, como se fossem monstros da selva. Este tratamento só piorou quando foi revelado que as criaturas de fora nunca atacavam os doentes. Em dado ponto, um grupo de mal intencionados se reuniu na praça Freyja, perseguindo os doentes cidade a fora. Felizmente, isso foi parado pelos militares.

 

Entretanto, no final das contas, os doentes eram enviados para a selva. Não para nos ver livres deles, mas para fazer uso de sua imunidade à natureza daquele mundo. Isso se transformou em um enorme sucesso que acabou resolvendo o problema de comida e água. Eles conseguiam se aventurar e explorar a área circundante e retornar com frutas comestíveis, vegetais e pequenos mamíferos que caçavam.

 

Este foi um momento decisivo para nós. E então nossa sorte apareceu de novo. Todas as tentativas de pesca haviam fracassado até  aquele momento, mas de repente havia peixes em todos os lugares do rio. Logo descobrimos que havia períodos diferentes para quando os peixes ficavam em mar aberto ou mais perto da costa. No entanto, assim que chegaram perto da terra, misteriosas tempestades roxas que duravam semanas atormentaram a cidade. E ainda assim, nós sobrevivemos. Muitas pessoas não, claro, mas a vida era possível. No final, nós prevalecemos.

 

Durante os cinco anos que se seguiram, não houve muitas catástrofes e nosso foco na sobrevivência mantinha longe nossos pensamentos com os de fora. Até Isabella pensava cada vez menos em seus pais enquanto crescia. Com o tempo, a maioria das pessoas se acostumou com a situação bizarra em que se encontravam desde julho de 2013. Muitas pessoas cometeram suicídio, sim, mas a maioria das pessoas preferiu viver nessa terra desconhecida.

 

Entretanto, dois eventos mudaram as coisas. Primeiro, foi o que aconteceu com uma expedição planejada ao mar. Centenas de pessoas, a maioria homens, decidiram se aventurar no oceano com um dos cruzeiros de luxo que estavam ancorados ao lado da cidade. Esta seria uma grande aventura e, talvez, uma maneira de encontrar algumas respostas de onde estávamos. Isso inspirou todos nós. Milhares de pessoas - incluindo Isabella e eu - nos reunimos para ver o enorme barco partir lentamente. Tudo parecia semelhante àquele dia cinco anos antes, quando esperávamos que o parque de diversões fosse aberto. Todos nós olhamos para o horizonte enquanto o barco - chamado Birdo de Espero - se transformava em um pequeno ponto contra o sol poente. Nós imaginamos as incríveis aventuras por quais passariam e esperávamos seu retorno. Então algo que deveia ser maior do que qualquer outra coisa que já tínhamos visto até agora pulou da água e engoliu Birdo de Espero inteiro.

 

Algumas pessoas gritaram, outras choraram. Isso foi um golpe pesado contra a cidade. Apenas saber que um ser assim - um ser capaz de comer um cruzeiro de luxo inteiro em uma única mordida - poderia existir privou muitas pessoas de suas esperanças por um futuro melhor.

 

O evento seguinte foi diferente. Foi um milagre, para se dizer no mínimo. Aconteceu apenas um mês depois da destruição do Birdo de Espero. Um guarda militar, um jovem que tinha apenas quinze anos na época do nosso desaparecimento da Terra, descobriu que, quando estava em um determinado lugar na praça Freyja, podia sintonizar uma estação de rádio específica do nosso antigo mundo. O nome da estação era Synthwave Mix que dedicava a maior parte de seus programas a esse tipo de música. A esperança retornou imediatamente, mas desta vez a esperança era diferente das que havíamos passado cinco anos construindo dentro de nós. Essa era a esperança de ver nossos entes queridos novamente. A esperança de voltar para casa. As pessoas na universidade investigaram a área para tentar determinar de onde os sinais de rádio estavam vindo. Não tiveram muito sucesso, mas logo perceberam que emanava do solo abaixo da praça Freyja.

 

Enquanto a área era investigada pelos cientistas, pessoas comuns apareceram em massa. Todos tinham rádios de diferentes tipos, como crianças carregando bichos de pelúcia para se sentirem seguros, na esperança de entrar em sintonia com o Synthwave Mix e sentir o gosto perdido do lar. É claro que a área onde a estação de rádio podia ser ouvida era pequena demais e a polícia precisava expulsar todo mundo para dar aos cientistas a sala de que precisavam. Alguns dias depois os cientistas colocaram um conjunto de alto-falantes grandes ao pé da estátua de Freyja e os conectaram ao receptor que estavam usando para ouvir a estação de rádio.

 

Dia e noite, a música calma e sintética, as vezes um tanto melancólica, tocava sem parar para toda a cidade. As pessoas se reuniam em torno da estátua. Até desafiaram os perigos da noite. Isso se tornou nossa nova tradição nas cidades. Terminar o dia indo à estátua e sentando-se ao redor dela, como em oração, tornou-se nossa peregrinação. Não era exatamente a música que atraia as pessoas para a praça, mas sim sua origem. Ainda assim, as melodias eletrônicas logo se transformaram em um símbolo de todas as nossas esperanças e sonhos. De tempos em tempos, as pessoas se levantavam e dançavam - às vezes, enquanto choravam com uma alegria agridoce, difícil de explicar. Embora, o que nos fez ficar em silêncio e ficar totalmente concentrado foi quando os anfitriões disseram algo. Geralmente, eles só falavam sobre a música que estavam transmitindo - completamente inconscientes de que uma cidade inteira cheia de pessoas os ouvia quase religiosamente - mas raramente ocasiões, eles falavam sobre o mundo lá fora. Naquela época, parecia que nossos corações pararam coletivamente em antecipação. Falariam algo sobre nós, sobre seus esforços para descobrir onde estávamos e como nos trariam de volta? Mas nunca houve notícias sobre nós, como se já tivessem se esquecido ou nunca tivessem notado nossa existência. O trágico destino da cidade de Korona nunca foi citado. No entanto, nunca perdemos a fé.

 

Demorou muito tempo - e agora estou chegando mais perto dos dias atuais - mas, eventualmente, os cientistas decidiram que valeria a pena cavar um grande buraco exatamente onde as ondas de rádio pareciam ser ejetadas para fora do solo. Isso não era uma tarefa fácil e nem segura. O trabalho levou semanas. Mais uma vez todos nós ajudamos. Ninguém realmente sabia exatamente o que estávamos procurando, só sabíamos que era alguma coisa.

 

Quando chegamos ao fundo, onde a rocha se tornava muito difícil de escavar, uma montanha de terra cobria o solo em volta da praça. Nossos esforços não tinham sido em vão, descobrimos. Logo abaixo do local onde as ondas de rádio haviam sido captadas, havia um pequeno buraco no leito rochoso. As pessoas foram solicitadas a se afastar dela enquanto os cientistas a investigavam. Primeiro, tentaram medir o quão profundo era. Isso levou algum tempo por ser difícil encontrar uma corda longa o suficiente. No final, foi estimado em cerca de 700 metros de profundidade. Em seguida, alguns equipamentos foram enviados amarrados ao final da corda, e para surpresa de todos, tudo o que foi enviado foi engolido pelo buraco. Claro, ninguém sabia para onde ia, mas todos nós pensamos a mesma coisa. Que, de alguma forma, havia voltado para casa. Era uma suposição razoável, dado que a única coisa saindo do buraco - as ondas de rádio - vinham da nossa Terra. Todos nos alegramos com essa descoberta. Mais experimentos foram feitos e, embora algumas perguntas permanecessem sem resposta, o consenso - mesmo entre os cientistas - era que o buraco realmente era um portal de volta ao nosso próprio mundo.

 

Haviam dois grandes problemas que precisavam ser resolvidos. O primeiro era a segurança. Toda vez que algo amarrado à corda desaparecia no fundo do buraco, a corda era cortada como o arranha-céu cinco anos antes. Isso significava que era possível que quem entrasse no buraco também fosse cortado. No entanto, este problema foi resolvido em breve. Ao amarrar uma câmera à corda, conectada a uma tela acima do solo, descobriu-se que a corda só era cortada quando puxada de volta. Contanto que não fosse puxado para trás, a tela ainda recebia sinais da câmera. A câmera nunca gravou nada além de escuridão no que se supunha ser o outro lado, mas desde que continuou a trabalhar até que a corda fosse puxada para trás, isso não parecia ser um problema tão grande. Afinal, alguns problemas técnicos eram esperados sob aquelas circunstâncias.

 

O segundo problema era que o buraco era pequeno demais para qualquer um passar. Muitas tentativas foram feitas para alargar o buraco, mas o leito de rocha parecia ser feito de um material mais forte do que qualquer uma de nossas máquinas poderia quebrar. Isso era extremamente frustrante. Isso nos fez sentir como se tivéssemos chegado à linha de chegada apenas para descobrir que não conseguimos atravessá-la. No final, uma das cientistas disse que queria mandar seu filho de dez anos para o buraco. Ele era pequeno o suficiente para caber por ele. Isso foi amplamente debatido por algum tempo antes de ser aprovado. A mãe argumentou que a cidade de Korona não era lugar para seu filho e que todas as evidências sugeriam que o buraco era o único caminho para casa.

 

O menino foi corajoso. Ele sabia que provavelmente nunca mais veria sua mãe de novo, mas ainda assim continuou. Recebeu um walkie-talkie e depois de um adeus cheio de lágrimas para sua mãe, foi mandado pelo buraco negro de 700 metros de profundidade. Foi instruído a ligar o rádio depois que chegasse ao outro lado, confirmando que estaria seguro. Depois que a corda foi puxada, a mãe esperou e esperou que seu filho se apresentasse. No entanto, ele nunca fez. Durante semanas, a mãe sentou-se na beira do buraco - sob calor impiedoso e sob chuva torrencial - chamando o filho várias vezes com seu walkie-talkie. Ninguém sabia o que, se alguma coisa, tinha dado errado. Como nenhuma outra onda de rádio foi captada além do Synthwave Mix, era possível que outras ondas de rádio simplesmente não pudessem entrar em nosso mundo por algum motivo. Ainda assim, a autoridade consideraram o buraco muito inseguro para qualquer outra pessoa passar.

 

Isso não mudou o pensamento das pessoas. O buraco representava a única esperança verdadeira que sentíamos em anos. E dadas todas as coisas horríveis em nosso mundo que poderiam nos destruir a qualquer momento com a mesma facilidade com que sopramos uma vela, o pequeno risco de passar pelo buraco parecia ser mais do que aceitável. O buraco era vigiado pela polícia, mas a maioria da polícia compartilhava a opinião coletiva das cidades de que o buraco era a única saída... não para nenhum dos adultos, mas para nossas crianças.

 

E agora estou aqui sentada, no quarto que paguei há cinco anos atrás, escrevendo isso. Durante as últimas semanas, muitos pais têm mandado seus filhos pelo buraco à noite. Este mundo realmente não é lugar para eles. Embora possam sobreviver, merecem mais. Por isso, como muitos outros, decidi enviar Isabella para casa. Quando conversei com ela sobre isso, olhou para mim com uma felicidade em seus olhos que eu não via desde que fomos transportados para este mundo terrível e esquecido por Deus.

 

Escrevi isso durante todo o dia de hoje. É meu testemunho do que aconteceu com Korona. Vou dar este caderno para Isabella. Tenho certeza de que ela poderá dar a seu pai. De alguma forma, eu sei em meu coração que ela encontrará seu caminho de volta para seus pais. Em breve estará escuro e levarei Isabella para a praça Freyja uma última vez.

 

Me desculpe pela demora,

 

Helena.

 

Gostaria de saber a opinião de vocês sobre o relato.

 

Servir e proteger.

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